Infelizmente, esse quadro está se desenhando em vários lugares Brasil afora, devido ao novo aumento de restrições sociais por conta da pandemia do coronavírus. A ideia, pelo visto, é reforçar o distanciamento social e encher esse período de lockdown — seja o total ou o mitigado — com o máximo possível de feriados, para manter o comércio funcionando sem interrupções no resto do ano.
Antes de qualquer coisa, a quem porventura, diante desses decretos do Poder Executivo, ainda esteja em dúvida sobre quando celebrar a Paixão de Cristo ou visitar seus entes falecidos no cemitério, sejam suficientes estas palavras de Jesus: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mt 22, 21). Que em estado de calamidade as autoridades civis mexam no ano civil, com seus feriados civis, é perfeitamente compreensível. Agora, o calendário religioso, com suas festividades religiosas, tem outro caráter. Trata-se de celebrações da Igreja, e tão-somente a ela dizem respeito.
Sim, o fato de essas datas religiosas serem também feriados impacta a vida social e econômica dos cidadãos, mas o repouso que elas pedem não é a simples ausência de trabalho; as festas católicas — e com elas os domingos — têm um significado muito mais profundo. O fato de prefeitos e governadores brincarem com esses dias como quem move peças de xadrez e, pior ainda, de os católicos aceitarmos isso tranquilamente, mostra não só a falta de limites dos governantes, mas também a perda de princípios dos que somos governados. Se não nos incomoda que políticos mexam com nossas festas e dias santos, é porque há, em primeiro lugar, algo de muito errado conosco.
É claro que tentativas de se mexer no calendário cristão não nasceram com o coronavírus. Após a Revolução Francesa, por exemplo, os rebeldes anticlericais instauraram, de 1792 a 1805, um novo calendário, baseado não no ciclo litúrgico católico, mas no ciclo da natureza. A iniciativa não “vingou”, mas, para quem conhece a história da salvação, é impossível não associar o episódio à desolação do Templo de Jerusalém, no Antigo Testamento. Na Vulgata latina, o Salmo 73 traz uma redação que faz lembrar muito essas tentativas de intromissão no culto divino:
Quantas maldades cometeu o inimigo no santuário!
E os que te odeiam, gloriam-se (de te insultar) no meio da tua solenidade.
Hastearam os seus estandartes como troféus;
e não respeitaram nem as eminências nem as saídas.
Como num bosque de árvores, com machados
despedaçaram à porfia as suas portas;
com machado e martelo tudo derribaram.
Puseram fogo ao teu santuário;
na terra profanaram o tabernáculo do teu nome.
Disseram no seu coração com os das suas parentelas:
Façamos cessar na terra todos os dias de festa consagrados a Deus (v. 3-8).
Quiescere faciamus omnes dies festos Dei a terra; literalmente: “Façamos cessar na terra todos os dias de festa consagrados a Deus”. Como a Neovulgata já traz uma frase diferente, só quem segue a tradução bíblica do Pe. Matos Soares ou reza o Ofício Divino antigo lê esse versículo deste modo (mais especificamente, toda quinta-feira, na Hora Sexta) [1].
É claro que cada situação tem suas circunstâncias e peculiaridades. A impiedade dos poderosos têm seus graus. Os governantes de nossos municípios e estados, com seus decretos muitas vezes mal escritos e desajeitados, não chegam nem perto da malícia dos revolucionários franceses. E esses, por sua vez, não cometeram mais atrocidades que os comunistas no século XX, campeões em matéria de perseguição religiosa. (Quem tiver a oportunidade, leia depois o que foi o Experimento Pitesti, na Romênia, e comprove por si mesmo; ou um pouco sobre a situação atual da China, extremamente hostil aos cristãos, seus ritos e símbolos.)
O que nos importa nesta matéria, porém, mais do que deplorar os desmandos dos que estão no poder, é identificar o que está por trás da aceitação pacífica desta ingerência descabida nos “dias de festa consagrados a Deus”.
Em primeiro lugar, o que enfraquece um povo a ponto de impedi-lo de resistir a ações como essa? Justamente a sua falta de identidade. Embora os brasileiros se gabem de ser “a maior nação católica do mundo”, a verdade é que decretos como os que citamos não teriam lugar numa sociedade verdadeiramente católica. Por quê? Porque um povo religiosamente sadio — desde as autoridades até o mais humilde dos súditos — está disposto a reconhecer, em tudo, o primado de Deus.
Isso ficava evidente, entre outras coisas, na forma como antes eram construídas as cidades: justamente ao redor de uma igreja e de sua praça — isto é, justamente em torno do “domingo”, dia de culto a Deus e repouso do trabalho. Também era assim Jerusalém, a qual “não era tanto uma cidade com um Templo quanto um Templo com uma cidade construída à sua volta” [2].
Um povo religiosamente sadio, desde as autoridades até o mais humilde dos súditos, está disposto a reconhecer em tudo o primado de Deus.
O oposto disso é justamente o número 666, a marca da Besta, como explica o teólogo Scott Hahn:
666 pode ser interpretado como degradação do número sete, que, na tradição israelita, representava perfeição, santidade e a aliança. O sétimo dia, por exemplo, foi declarado santo por Deus e destacado para descanso e adoração. O trabalho era feito em seis dias; entretanto, era santificado na adoração sacrifical representada pelo sétimo dia. O número “666”, então, representa um homem paralisado no sexto dia, servindo à besta, que se preocupa em comprar e vender (cf. Ap 13, 17) sem descanso para a adoração. Embora o trabalho seja santo, torna-se mau quando o homem se recusa a oferecê-lo a Deus [3].
O que está por trás desses tempos apocalípticos que vivemos, portanto, é justamente o esvaziamento do significado original do domingo e dos dias santos. Sim, nós sabemos: devido ao fechamento das igrejas e à suspensão do culto público em vários lugares, muitos estão impossibilitados de participar da Santa Missa... Mas o problema aqui é maior e muito mais antigo: já faz tempo que o domingo foi reduzido por muitos a puro “fim de semana”, mero repouso e diversão.
O que está por trás desses tempos apocalípticos que vivemos, portanto, é justamente o esvaziamento do significado original do domingo e dos dias santos. Sim, nós sabemos: devido ao fechamento das igrejas e à suspensão do culto público em vários lugares, muitos estão impossibilitados de participar da Santa Missa... Mas o problema aqui é maior e muito mais antigo: já faz tempo que o domingo foi reduzido por muitos a puro “fim de semana”, mero repouso e diversão.
Os domingos e dias de festa
Foi justamente para lembrar aos católicos o real valor do domingo que o Papa S. João Paulo II, antes da virada do milênio, escreveu a Carta Apostólica Dies Domini. “Se, por sua natureza, é conforme à necessidade humana de descanso”, disse o Santo Padre, referindo-se à instituição do sábado, ainda no Antigo Testamento, “cumpre, não obstante, deduzir da fé seu sentido mais profundo, para que não se torne coisa comum e costumeira nem seja traído” (DD 13).
O Papa ensinava, antes de tudo, que o ato de reservar um dia da semana para Deus, mais do que uma observância ritual e externa, é um verdadeiro reconhecimento dele como Dominus, isto é, “Senhor”, não só do tempo e da história, mas de tudo que existe:
Foi justamente para lembrar aos católicos o real valor do domingo que o Papa S. João Paulo II, antes da virada do milênio, escreveu a Carta Apostólica Dies Domini. “Se, por sua natureza, é conforme à necessidade humana de descanso”, disse o Santo Padre, referindo-se à instituição do sábado, ainda no Antigo Testamento, “cumpre, não obstante, deduzir da fé seu sentido mais profundo, para que não se torne coisa comum e costumeira nem seja traído” (DD 13).
O Papa ensinava, antes de tudo, que o ato de reservar um dia da semana para Deus, mais do que uma observância ritual e externa, é um verdadeiro reconhecimento dele como Dominus, isto é, “Senhor”, não só do tempo e da história, mas de tudo que existe:
Na verdade, a vida inteira do homem e todo o seu tempo devem ser vividos como louvor e agradecimento ao Criador. No entanto, a relação do homem com Deus necessita também de momentos determinados de oração explícita, nos quais a relação se torna diálogo intenso, envolvendo toda a dimensão da pessoa. O “dia do Senhor” é, por excelência, o dia desta relação, no qual o homem eleva a Deus o seu cântico, tornando-se voz de toda a criação. Por isso mesmo é também dia de repouso: a interrupção do ritmo, muitas vezes oprimente, das ocupações exprime, com a linguagem figurada de “novidade” e “separação”, o reconhecimento da dependência de nós mesmos e de todo o universo de Deus. Tudo é de Deus! O dia do Senhor está continuamente a afirmar este princípio [...]. Ele nos lembra que a Deus pertencem o universo e a história, nem o homem pode dedicar-se à sua obra de cooperador do próprio Criador, sem estar constantemente consciente desta verdade (DD 15).
Enquanto, porém, os judeus guardavam o dia do sábado, nós, católicos — nas palavras de São Gregório Magno — “consideramos verdadeiro sábado a pessoa do nosso Redentor, nosso Senhor Jesus Cristo” (DD 18). Com a Encarnação do Verbo, o próprio Deus irrompeu na história humana; em Cristo, todas as coisas são recriadas. Por isso, mais do que a primeira Criação ou a libertação de Israel do Egito — motivos pelos quais a Lei mosaica impunha a guarda do sábado —, os cristãos desde o princípio guardam o domingo: Haec est dies, quam fecit Dominus: exsultémus, et laetémur in ea, “Este é o dia que o Senhor fez para nós, alegremo-nos e nele exultemos” (Sl 117, 24); este é o dia de nossa Páscoa semanal, quando recordamos a Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo, e nossa consequente libertação do pecado.
Mas o domingo não evoca só um evento passado na história; ele é também, numa expressão dos Santos Padres, o “oitavo dia”:
Situado, relativamente à sucessão septenária dos dias, numa posição única e transcendente [...], o domingo significa o dia realmente único que virá após o tempo presente, o dia sem fim, que não conhecerá tarde nem manhã, o século imorredouro que não poderá envelhecer; o domingo é o prenúncio incessante da vida sem fim, que reanima a esperança dos cristãos e os estimula no caminho [...]. A celebração do domingo, dia simultaneamente “primeiro” e “oitavo”, impele o cristão para a meta da vida eterna (DD 26).
Domingo a domingo, a Igreja caminha para o último “dia do Senhor”, o domingo sem fim [...]. Isto faz com que o domingo seja o dia em que a Igreja, manifestando mais claramente sua índole “esponsal”, antecipa de algum modo a natureza escatológica da Jerusalém celeste. Ao reunir seus filhos na assembleia eucarística e educá-los para a expectativa do “Esposo divino”, ela realiza uma espécie de “exercício do desejo”, no qual saboreia antecipadamente a alegria dos novos céus e da nova terra, quando a cidade santa, a nova Jerusalém, descerá do céu, de junto de Deus, “bela como uma esposa que se ataviou para o seu esposo” (Ap 21, 2) (DD 37).
Isso significa que a vivência do domingo tem um significado para além desta vida: cada domingo é uma oportunidade de tocar o Céu enquanto ainda estamos aqui nesta terra. Não à toa, a Igreja preceitua que, neste dia (e em condições normais), seus filhos participem da Santa Missa. Emblemática é a história que os cristãos ucranianos contam de como seus antepassados descobriram a liturgia:
Enquanto, porém, os judeus guardavam o dia do sábado, nós, católicos — nas palavras de São Gregório Magno — “consideramos verdadeiro sábado a pessoa do nosso Redentor, nosso Senhor Jesus Cristo” (DD 18). Com a Encarnação do Verbo, o próprio Deus irrompeu na história humana; em Cristo, todas as coisas são recriadas. Por isso, mais do que a primeira Criação ou a libertação de Israel do Egito — motivos pelos quais a Lei mosaica impunha a guarda do sábado —, os cristãos desde o princípio guardam o domingo: Haec est dies, quam fecit Dominus: exsultémus, et laetémur in ea, “Este é o dia que o Senhor fez para nós, alegremo-nos e nele exultemos” (Sl 117, 24); este é o dia de nossa Páscoa semanal, quando recordamos a Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo, e nossa consequente libertação do pecado.
Mas o domingo não evoca só um evento passado na história; ele é também, numa expressão dos Santos Padres, o “oitavo dia”:
Situado, relativamente à sucessão septenária dos dias, numa posição única e transcendente [...], o domingo significa o dia realmente único que virá após o tempo presente, o dia sem fim, que não conhecerá tarde nem manhã, o século imorredouro que não poderá envelhecer; o domingo é o prenúncio incessante da vida sem fim, que reanima a esperança dos cristãos e os estimula no caminho [...]. A celebração do domingo, dia simultaneamente “primeiro” e “oitavo”, impele o cristão para a meta da vida eterna (DD 26).
Domingo a domingo, a Igreja caminha para o último “dia do Senhor”, o domingo sem fim [...]. Isto faz com que o domingo seja o dia em que a Igreja, manifestando mais claramente sua índole “esponsal”, antecipa de algum modo a natureza escatológica da Jerusalém celeste. Ao reunir seus filhos na assembleia eucarística e educá-los para a expectativa do “Esposo divino”, ela realiza uma espécie de “exercício do desejo”, no qual saboreia antecipadamente a alegria dos novos céus e da nova terra, quando a cidade santa, a nova Jerusalém, descerá do céu, de junto de Deus, “bela como uma esposa que se ataviou para o seu esposo” (Ap 21, 2) (DD 37).
Isso significa que a vivência do domingo tem um significado para além desta vida: cada domingo é uma oportunidade de tocar o Céu enquanto ainda estamos aqui nesta terra. Não à toa, a Igreja preceitua que, neste dia (e em condições normais), seus filhos participem da Santa Missa. Emblemática é a história que os cristãos ucranianos contam de como seus antepassados descobriram a liturgia:
Em 988, quando se converteu ao Evangelho, o príncipe Vladimir de Kiev enviou emissários a Constantinopla, a capital da cristandade oriental. Ali, eles participaram da liturgia bizantina na catedral da Sagrada Sabedoria, a igreja mais majestosa do Oriente. Depois de passar pela experiência do canto litúrgico, do incenso, dos ícones — mas, acima de tudo, da Presença —, os emissários enviaram esta mensagem ao príncipe: “Não sabíamos se estávamos no céu ou na terra. Nunca vimos tanta beleza… Não sabemos descrevê-la, mas disto temos certeza: ali, Deus habita entre a humanidade” [4].
É por isso que cada cristão que vive o domingo como um dia consagrado ao Senhor é uma ameaça ao nosso mundo pagão e materialista, para o qual só existem o aqui e o agora; uma ameaça aos tiranos deste mundo, que se creem deuses e senhores do bem e do mal.
O Papa S. João Paulo II recorda, a esse propósito, o “autêntico heroísmo com que sacerdotes e fiéis” observaram a obrigação de ir à Missa “em muitas situações de perigo e restrição da liberdade religiosa”, como foi o caso dos mártires de Abitinas:
Quando, durante a perseguição de Diocleciano, viram suas assembleias interditas com a máxima severidade, foram muitos os corajosos que desafiaram o édito imperial, preferindo a morte a faltar ao sacrifício eucarístico dominical. Foi o caso dos mártires de Abitinas, na África proconsular, que responderam aos seus acusadores: “Foi sem qualquer temor que celebramos o domingo, porque não se pode deixar o domingo; assim manda a Lei”; “sine dominico non possumus — sem o domingo, não podemos viver”. Uma das mártires confessou: “Sim, fui à assembleia e celebrei o domingo com os meus irmãos, porque sou cristã” (DD 46).
Hoje, quando as igrejas e seus cultos são relegados, sem mais nem menos, à esfera das “atividades não essenciais”, como não recordar essas perseguições à Igreja e aos cristãos? Como não pensar que estamos em um sistema iníquo — que só “se preocupa em comprar e vender sem descanso para a adoração”? Como não pensar de imediato na marca da Besta de que fala o Apocalipse?
Não impressiona que, em tempos como estes, se multipliquem cada vez mais as ameaças à liberdade humana — desde a de ir e vir até a de ganhar o pão com o suor do próprio rosto. Afinal, quando é minada a primeira e mais fundamental das liberdades — isto é, a de adorar a Deus e celebrar os dias consagrados a Ele —, que mais pode restar ao homem, senão a submissão absoluta aos tiranetes da vez, que atuam como “pequenos deuses” neste mundo?
Evidentemente, os primeiros que nos escravizam somos nós mesmos. Há quanto tempo o domingo já não é, para os católicos, o dies Domini? Diante dos flagelos dos últimos dias, esse é o momento apropriado para um exame de consciência. Para muitíssimos batizados, tragicamente, a qualificação da Missa como uma “atividade não essencial” só foi o carimbo público do que já estava decretado há muito tempo em suas vidas e na prática de suas famílias. Deus já não é essencial para muitos católicos, e não é de hoje.
Em La Salette, Nossa Senhora apareceu chorando justamente por causa do descaso do povo católico para com o domingo — descaso que envolvia não só a omissão dos próprios deveres religiosos em dias santos, mas também o trabalho frenético nesses mesmos dias. De lá para cá, infelizmente, a situação não melhorou muito; a própria cultura em que nos encontramos não favorece em nada o repouso dominical e o culto a Deus. Mesmo nessa condição adversa, todavia, somos chamados a dar testemunho de fidelidade, acolhendo o brado com que S. João Paulo II procurou acordar, há alguns anos, a consciência dos católicos: “Não tenhais medo de dar o vosso tempo a Cristo!” (DD 7).
Até lá, enquanto continuarmos nos recusando a reconhecer o domínio de Deus sobre tudo — especialmente o senhorio dele sobre o tempo que nos foi confiado —, continuaremos a ser escravos dos senhores deste mundo — e estarão sob ameaça não só os domingos e dias santos, mas inclusive esta coisa que chamamos de liberdade.
É por isso que cada cristão que vive o domingo como um dia consagrado ao Senhor é uma ameaça ao nosso mundo pagão e materialista, para o qual só existem o aqui e o agora; uma ameaça aos tiranos deste mundo, que se creem deuses e senhores do bem e do mal.
O Papa S. João Paulo II recorda, a esse propósito, o “autêntico heroísmo com que sacerdotes e fiéis” observaram a obrigação de ir à Missa “em muitas situações de perigo e restrição da liberdade religiosa”, como foi o caso dos mártires de Abitinas:
Quando, durante a perseguição de Diocleciano, viram suas assembleias interditas com a máxima severidade, foram muitos os corajosos que desafiaram o édito imperial, preferindo a morte a faltar ao sacrifício eucarístico dominical. Foi o caso dos mártires de Abitinas, na África proconsular, que responderam aos seus acusadores: “Foi sem qualquer temor que celebramos o domingo, porque não se pode deixar o domingo; assim manda a Lei”; “sine dominico non possumus — sem o domingo, não podemos viver”. Uma das mártires confessou: “Sim, fui à assembleia e celebrei o domingo com os meus irmãos, porque sou cristã” (DD 46).
Hoje, quando as igrejas e seus cultos são relegados, sem mais nem menos, à esfera das “atividades não essenciais”, como não recordar essas perseguições à Igreja e aos cristãos? Como não pensar que estamos em um sistema iníquo — que só “se preocupa em comprar e vender sem descanso para a adoração”? Como não pensar de imediato na marca da Besta de que fala o Apocalipse?
Não impressiona que, em tempos como estes, se multipliquem cada vez mais as ameaças à liberdade humana — desde a de ir e vir até a de ganhar o pão com o suor do próprio rosto. Afinal, quando é minada a primeira e mais fundamental das liberdades — isto é, a de adorar a Deus e celebrar os dias consagrados a Ele —, que mais pode restar ao homem, senão a submissão absoluta aos tiranetes da vez, que atuam como “pequenos deuses” neste mundo?
Evidentemente, os primeiros que nos escravizam somos nós mesmos. Há quanto tempo o domingo já não é, para os católicos, o dies Domini? Diante dos flagelos dos últimos dias, esse é o momento apropriado para um exame de consciência. Para muitíssimos batizados, tragicamente, a qualificação da Missa como uma “atividade não essencial” só foi o carimbo público do que já estava decretado há muito tempo em suas vidas e na prática de suas famílias. Deus já não é essencial para muitos católicos, e não é de hoje.
Em La Salette, Nossa Senhora apareceu chorando justamente por causa do descaso do povo católico para com o domingo — descaso que envolvia não só a omissão dos próprios deveres religiosos em dias santos, mas também o trabalho frenético nesses mesmos dias. De lá para cá, infelizmente, a situação não melhorou muito; a própria cultura em que nos encontramos não favorece em nada o repouso dominical e o culto a Deus. Mesmo nessa condição adversa, todavia, somos chamados a dar testemunho de fidelidade, acolhendo o brado com que S. João Paulo II procurou acordar, há alguns anos, a consciência dos católicos: “Não tenhais medo de dar o vosso tempo a Cristo!” (DD 7).
Até lá, enquanto continuarmos nos recusando a reconhecer o domínio de Deus sobre tudo — especialmente o senhorio dele sobre o tempo que nos foi confiado —, continuaremos a ser escravos dos senhores deste mundo — e estarão sob ameaça não só os domingos e dias santos, mas inclusive esta coisa que chamamos de liberdade.
1.Na tradução brasileira da Liturgia das Horas, mais fiel ao original hebraico, o alvo dos ataques dos inimigos são os templos e não propriamente os dias santos (no rito antigo, este salmo é rezado na Hora Média da terça-feira da III Semana).
2.Scott Hahn, O Banquete do Cordeiro: A Missa segundo um convertido. São Paulo: Loyola, 2014, p. 70.
3.Id., p. 84.
4.Id., p. 109.
Pe. Paulo Ricardo
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