As Admoestações são uma coleção de 28 textos curtos (só a primeira é um pouco maior) que tem ampla presença nos manuscritos medievais. Uma das Adm foi o primeiro texto de Francisco citado fora da Ordem (em 1231) por um frade dominicano. Lembra-se que Francisco costumava fazer alocuções a todos os frades nos capítulos gerais. Algumas destas admoestações podem provir desses capítulos, mas não todas. Do n.º 1 ao 13 os temas são variados; do 14 ao 28 formam o que se chama de “bem-aventuranças franciscanas”. Provavelmente são textos que só foram falados por São Francisco e que foram preservados porque alguém tomou nota. É até possível que tenha sido alguém de fora da Ordem (pensa-se em um cisterciense secretário do Card. Hugolino) porque usa expressões como prelado, servo de Deus, etc. que não eram comuns no meio franciscano. As Admoestações são um bom resumo da proposta espiritual de São Francisco. Introdução e textos traduzidos por Frei José Carlos Corrêa Pedroso, OFMCap.[I - O corpo do Senhor]
Diz o Senhor Jesus aos seus discípulos: Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vai ao Pai a não ser por mim. Se me conhecêsseis, certamente conheceríeis também meu Pai; desde agora o conheceis e o vistes. Diz-lhe Filipe: Senhor, mostra-nos o Pai e isso nos basta. Diz-lhe Jesus: Há tanto tempo que estou convosco, e não me conhecestes? Filipe, quem me vê, vê também meu Pai (Jo 14, 6-9). O Pai habita na luz inacessível (cf. ITm 6,16) e Deus é espírito (Jo 4, 24), e ninguém jamais viu a Deus (Jo 1,18). Portanto, ele só pode ser visto em espírito, porque é o espírito que vivifica; a carne não serve para nada (Jo 6,64).
Mas também o Filho, naquilo que é igual ao Pai, não é visto por ninguém de maneira diferente que o Pai e que o Espírito Santo. Daí, todos os que viram o Senhor Jesus segundo a humanidade e não viram nem creram segundo o espírito e a divindade que ele é o verdadeiro Filho de Deus foram condenados; de igual modo, todos os que veem o sacramento, que é santificado por meio da palavra do Senhor sobre o altar pelas mãos do sacerdote em forma de pão e vinho, e não veem nem creem segundo o espírito e a divindade que seja verdadeiramente o corpo e o sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, foram condenados, sendo testemunha o próprio Altíssimo que diz: Isto é o meu corpo e o meu sangue da nova aliança [que será derramado por todos] (Mc 14, 22-24); e: Quem come minha carne e bebe meu sangue tem a vida eterna (cf. Jo 6, 55). Por isso, o Espírito do Senhor, que habita em seus fieis, é que recebe o santíssimo corpo e sangue do Senhor.
Todos os outros que não têm do mesmo espírito e ousam recebê-lo comem e bebem a própria condenação (1Cor 11,29).
Portanto, ó filhos dos homens, até quando estareis com o coração duro? (Sl 4,3). Porque não reconheceis a verdade e não credes no Filho de Deus? (Jo 9, 35). Eis que diariamente ele se humilha (cf. Fl 2,8), como quando veio do trono real (Sb 18,15) ao útero da Virgem; diariamente ele vem a n[os em aparência humilde; diariamente ele desce ao seio do Pai (Jo 6,38; 1,18) sobre o altar nas mãos do sacerdote. E assim como ele se manifestou aos santos apóstolos na verdadeira carne, do mesmo modo ele se manifesta a nós no pão sagrado. E assim como eles com a visão do seu corpo só viam a carne dele, mas contemplando-o com olhos espirituais criam que ele é Deus, do mesmo modo também nós, vendo o pão e o vinho com os olhos do corpo, vejamos e creiamos firmemente que é vivo e verdadeiro o seu santíssimo corpo e sangue. E, desta maneira, o Senhor está sempre com seus fieis, como ele mesmo diz: Eis que estou convosco até o fim dos tempos (Mt 28,20).
[II - O mal da própria vontade]
Disse o Senhor a Adão: Podes comer de toda árvore; não comerás, porém, da árvore do bem e do mal (Gn 2, 16-17). Podia comer de toda árvore do paraíso, porque, não indo contra a obediência, não pecava. No entanto, come da árvore da ciência do bem aquele que se apropria de sua vontade e se exalta dos bens que o Senhor diz e opera nele; e assim, por sugestão do demônio e pela transgressão do mandamento, veio a existir o pomo da ciência do mal. Por isso, é necessário que sofra o castigo.
[III - A obediência perfeita]
Diz o Senhor no Evangelho: quem não renunciar a tudo o que possui não pode ser meu discípulo (Lc 14,33) e: quem quiser salvar sua vida, perdê-la-á (Lc 9,24). Abandona tudo que possui e perde seu corpo aquele que se oferece totalmente à obediência nas mãos de seu prelado. E aquilo que faz e diz, que saiba não ser contra a vontade dele, na condição de que seja bom o que ele faz, é verdadeira a obediência. E se o súdito vê coisas melhores e mais úteis à sua alma do que aquelas que o prelado lhe ordena, sacrifique voluntariamente as suas opiniões a Deus; procure, porém, a realizar em obras as que são do prelado. Pois, esta é a obediência caritativa (1Pd 1,22), porque satisfaz a Deus e ao próximo.
Se o prelado, porém, ordena algo contra sua alma, conquanto não lhe obedeça, não o abandone. E se por causa disso vier a sofrer a perseguição por parte de alguns, ame-os mais ainda por amor de Deus. Pois, quem prefere sofrer perseguição a separar-se de seus irmãos permanece verdadeiramente na perfeita obediência, porque expõe a sua vida (Jo 15,13) em favor dos seus irmãos. De fato, muitos são os religiosos que, sob pretexto de ver coisas melhores do que as que seus prelados ordenam, olham para trás (Lc 9, 62) e voltam ao vômito da própria vontade (Pr 26,11; 2Pd 2,22); estes são homicidas e causam a perdição de muitas almas por causa de seus maus exemplos.
[IV - Que ninguém se aproprie do ofício de prelado]
Não vim para ser servido, mas para servir (cf. Mt 20, 28), diz o Senhor. Aqueles que foram constituídos acima dos outros se gloriem tanto deste ofício de prelado como se estivessem sido destinados para o ofício de lavar os pés dos irmãos. E se mais se perturbam por causa do ofício de prelado que lhes foi tirado do que por causa do ofício de lavar os pés, tanto mais ajuntam para si bolsas para perigo da alma.
[V - Que ninguém se ensoberbeça, mas se glorie na cruz do Senhor]
Presta atenção, ó homem, à grande excelência em que te colocou o Senhor Deus, porque te criou e te formou à imagem de seu dileto Filho segundo o corpo e à sua semelhança segundo o espírito (cf. Gn 1, 26). E todas as criaturas que há sob o céu, à sua maneira, servem, reconhecem e obedecem ao seu Criador melhor do que tu. E também não foram os demônios que o crucificaram, mas tu, com eles, o crucificaste e ainda o crucificas, deleitando-te em vícios e pecados. Portanto, a partir de que podes gloriar-te? Pois se fosses tão sutil e sábio a ponto de teres toda ciência (cf. 1Cor 13, 2) e saberes interpretar todos os gêneros de línguas (cf. 1Cor 12, 28) e perscrutares com sutileza a respeito das coisas celestes, em nada disso te podes gloriar; porque um só demônio conhecia das coisas celestes e agora conhece das terrenas mais do que todos os homens, mesmo que existisse alguém que recebesse do Senhor um conhecimento especial da mais alta sabedoria. Igualmente, se fosses mais belo e rico do que todos e também se operasses maravilhas, de maneira a afugentares os demônios, tudo isto te é contrário, e nada te pertence, e em nada dessas coisas podes gloriar-te; mas nisto podemos gloriar-nos, em nossas fraquezas (cf. 2Cor 12,5) e em carregar cada dia a santa cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo (Jo 19,17; Lc 9,23; 14,27).
[VI - A imitação de Cristo]
Irmãos todos, prestemos atenção ao Bom Pastor que, para salvar as suas ovelhas (Jo 10, 11), suportou a paixão da cruz. As ovelhas do Senhor seguiram-no na tribulação e na perseguição, na vergonha e na fome (Rm 8, 35; 2Cor 11, 27), na enfermidade e na tentação e em outras coisas mais; e, a partir disso, receberam do Senhor a vida eterna. Daí, é grande vergonha para nós, servos de Deus, que os santos tenham feito as obras, e nós, proclamando-as, queiramos receber a glória e a honra.
[VII - Que a boa operação siga a ciência]
Diz o apóstolo: a letra mata, o espírito, porém, vivifica (2Cor 3,6). São mortos pela letra aqueles que somente desejam conhecer as palavras para serem considerados mais sábios entre os outros e poderem adquirir grandes riquezas, para dá-las aos parentes e amigos. São também mortos pela letra aqueles religiosos que não querem seguir o espírito da letra divina mas só desejam saber mais as palavras e interpretá-las para os outros. E vivificados pelo espírito da letra divina são aqueles que não atribuem ao corpo toda letra que sabem e desejam saber mas por palavra e exemplo devolvem-nas ao altíssimo Senhor Deus, de quem é todo bem.
[VIII - Evitar o pecado da inveja]
Diz o Apóstolo: Ninguém pode dizer: Senhor Jesus, a não ser no Espírito Santo (1Cor 12,3); e: Não há quem faça o bem, não há um sequer (Rm 3,12). Portanto, todo aquele que inveja seu irmão pelo bem que o Senhor diz e faz nele, incorre no pecado de blasfêmia, porque inveja o próprio Altíssimo, que diz e faz todo bem.
[IX - O amor]
Diz o Senhor: Amai os vossos inimigos [fazei o bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos perseguem e caluniam] (Mt 5,44). Pois ama de verdade seu inimigo quem não se dói pela injúria, que o outro lhe faz, mas se abrasa pelo amor de Deus por causa do pecado de sua alma. E lhe demonstre afeto por obras. (Tg 2,1).
[X - O castigo do corpo]
Há muitos que quando pecam ou recebem uma injúria, muitas vezes acusam o inimigo ou o próximo. Mas não é assim: porque cada um tem em seu poder o inimigo, isto é, o corpo, pelo qual peca. Por isso, bem-aventurado é o servo (Mt 24,46) que sempre mantiver preso em seu poder tal inimigo e sabiamente guardar-se dele; porque, enquanto fizer isso, nenhum outro inimigo visível ou invisível poderá prejudicá-lo.
[XI - Ninguém se corrompa pelo mal do outro]
Nada deve desagradar ao servo de Deus senão o pecado. E se alguma pessoa pecar de qualquer modo, e por isso, e não por caridade, o servo de Deus se perturbar e encolerizar, entesoura para si a culpa (cf Rm 2, 5). O servo de Deus que não se ira nem se perturba por coisa alguma vive retamente sem próprio. E bem aventurado é aquele que não guarda nada para si, dando o que é de César a César e o que é de Deus a Deus (Mt 22,21).
[XII - Conhecer o Espírito do Senhor]
Assim pode conhecer o servo de Deus se tem o espírito do Senhor: quando o Senhor fizer através dele algum bem, se sua carne não se exaltar por isso, porque é sempre contrária a todo bem, mas se se tiver ainda mais diante dos olhos por mais vil e se estimar como menor do que os outros homens.
[XIII - A paciência]
Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus (Mt 5,9). O servo de Deus não pode saber quanta paciência e humildade tem em si, enquanto tudo acontece como ele quer. Mas quando vier o tempo em que os que lhe deveriam dar prazer fizerem o contrário, a paciência e humildade que tiver nessa ocasião é tudo que tem e nada mais.
[XIV - A pobreza de espírito]
Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus (Mt 5,3). Há muitos que perseveram nas suas orações e trabalhos, fazendo muitas abstinências e suportando aflições em seus corpos. Mas por uma só palavra que parecer injúria para o seu próprio eu, ou por alguma coisa que tirarem deles, logo se perturbam, escandalizados. Esses não são pobres de espírito; porque o verdadeiro pobre de espírito odeia a si mesmo e ama os que batem no seu rosto (cfr. Mt 5,39).
[XV - A paz]
Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus (Mt 5,6). Verdadeiramente pacíficos são aqueles que, com todas as coisas que sofrem neste mundo, por amor de nosso Senhor Jesus Cristo guardam a paz na alma e no corpo.
[XVI - A pureza de coração]
Bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus (Mt 5,8). São verdadeiramente limpos de coração os que desprezam as coisas terrenas, buscam as celestiais e não deixam de adorar e ver sempre o Senhor Deus vivo e verdadeiro, com coração e alma limpa.
[XVII - O humilde servo de Deus]
Bem-aventurado o servo (Mt 24,46) que não se exalta mais por causa do bem que o Senhor diz e faz através dele do que pelo que diz e faz através de outro. Peca o homem que mais quer receber do seu próximo o que não quer dar de si ao Senhor Deus.
[XVIII - A compaixão do próximo]
Bem-aventurado o homem que suporta o próximo segundo a sua fragilidade naquilo em que gostaria de ser suportado por ele, se o seu caso fosse parecido. Bem-aventurado o servo que devolve todos os bens ao Senhor, porque quem guarda alguma coisa para si esconde em si o dinheiro do Senhor seu Deus (Mt 25,18) e o que julgava ter, vai ser tirado dele (Lc 8,18).
[XIX - O humilde servo de Deus]
Bem-aventurado o servo que não se tem por melhor quando é engrandecido e exaltado pelos homens, do que quando é tido por vil, simples e desprezado, porque quanto é o homem diante de Deus, tanto é e não mais. Ai do religioso que foi posto no alto pelos outros e por sua vontade não quer descer! E bem-aventurado o servo (Mt 24,4) que não é posto no alto por sua vontade e sempre deseja estar aos pés dos outros.
[XX - O bom religioso e o religioso frívolo]
Bem-aventurado é aquele religioso que não tem prazer e alegria a não ser nas santíssimas palavras e obras do Senhor e com elas leva o homem ao amor de Deus com gozo e alegria (cfr. Sl 50,10). Ai do religioso que se deleita em palavras ociosas e vãs e com elas leva o homem ao riso.
[XXI - O religioso frívolo e loquaz]
Bem-aventurado o servo que, quando fala, não manifesta tudo a seu respeito procurando recompensa, nem é precipitado para falar (Pr 29,20), mas prevê sabiamente o que tem que falar e responder. Ai do religioso que não sabe guardar em seu coração os bens que o Senhor lhe mostra (Lc 2,19-51) e em vez de mostrá-los aos outros por obras, quer mostrá-los às pessoas com palavras, visando recompensa! Ele recebe sua recompensa (cf Mt 6,2;6,16) e os ouvintes obtêm pouco fruto.
[XXII - A correção]
Bem-aventurado o servo que recebe repreensão, acusação e castigo tão pacientemente de outro como se fosse de si mesmo. Bem-aventurado o servo que, repreendido, aceita com bondade, obedece confuso, confessa-se humildemente e satisfaz de boa vontade. Bem-aventurado o servo que não é rápido para se desculpar e suporta humildemente a vergonha e a repreensão pelo pecado, quando não cometeu culpa.
[XXIII - A humildade]
Bem-aventurado o servo que é tão humilde entre os seus súditos como se estivesse entre os seus senhores. Bem-aventurado o servo que permanece sempre sob a vara da correção. Fiel e prudente é o servo (cfr. Mt 24, 45), que em toda culpa que comete não demora para punir-se interiormente pela contrição e exteriormente pela confissão, satisfazendo com obras.
[XXIV - O verdadeiro amor]
Bem-aventurado o servo que ama o seu irmão tanto quando está doente, e não lhe pode dar satisfação, como quando está com saúde, e pode ajudá-lo.
[XXV - O mesmo tema]
Bem-aventurado o servo que ama e respeita seu irmão quando ele está longe do mesmo jeito que quando ele está perto, e não diz nada por trás dele, que não possa dizer com caridade na sua frente.
[XXVI - Que os servos de Deus honrem os clérigos]
Bem-aventurado o servo que tem fé nos clérigos que vivem retamente segundo a forma da Igreja Romana. E ai daqueles que os desprezam pois, mesmo que sejam pecadores, ninguém deve julgá-los, porque só o próprio Senhor reservou o direito de os julgar. Pois como é maior o ministério a eles confiado do santíssimo corpo e sangue do Senhor nosso Jesus Cristo, que eles recebem e só eles administram aos outros, tanto maior pecado têm os que pecam contra eles, mais do que contra todas as outras pessoas deste mundo.
[XXVII - A virtude que afugenta o vício]
Onde há caridade e sabedoria, aí não há temor nem ignorância. Onde há paciência e humildade, aí não há ira nem perturbação. Onde há pobreza com alegria, aí não há cobiça nem avareza. Onde há quietude e meditação, aí não há solicitude nem distração. Onde há temor do Senhor guardando a porta, aí o inimigo não acha jeito de entrar. Onde há misericórdia e discrição, aí não há superficialidade nem endurecimento.
[XXVIII - Esconder o bem para que não se perca]
Bem-aventurado o servo que entesoura no céu (Mt 6,20) os bens que o Senhor lhe mostra e que não quer manifestá-los aos homens para receber recompensa, porque o próprio Altíssimo manifestará suas obras a quem lhe agradar. Bem-aventurado o servo que guarda os segredos do Senhor em seu coração (cfr. Lc 2,19. 51).
Fontes Franciscanas e Clarianas
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