Homilia pronunciada no dia 15 de Agosto de 1961, Festa da Assunção de Nossa Senhora.
Assumpta est Maria, in coelum, gaudent angeli. Maria foi levada por Deus, em corpo e alma, para os Céus. Há alegria entre os anjos e os homens. Qual a razão desta satisfação íntima que descobrimos hoje, com o coração que parece querer saltar dentro do peito e a alma cheia de paz?. Celebramos a glorificação da nossa Mãe e é natural que nós, seus filhos, sintamos um júbilo especial ao ver como é honrada pela Trindade Beatíssima.
Cristo, seu Filho Santíssimo, nosso irmão, deu-no-la por Mãe no Calvário, quando disse a S. João: eis aqui a tua Mãe. E nós recebêmo-la, com o discípulo amado, naquele momento de imenso desconsolo. Santa Maria acolheu-nos na dor, quando se cumpriu a antiga profecia: e uma espada trespassará a tua alma. Todos somos seus filhos; ela é Mãe de toda a Humanidade. E agora, a Humanidade comemora a sua inefável Assunção: Maria sobe aos céus, Filha de Deus Pai, Mãe de Deus Filho, Esposa de Deus Espírito Santo. Mais do que Ela, só Deus.
O mistério do amor
Mistério de amor é este. A razão humana não consegue compreendê-lo. Só a fé pode explicar como é que uma criatura foi elevada a tão grande dignidade, até se tornar o centro amoroso em que convergem as complacências da Trindade. Sabemos que é um segredo divino. Mas, por se tratar da nossa Mãe, sentimo-nos capazes de o compreender melhor - se é possível falar assim - do que outras verdades da fé.
Como nos teríamos comportado se tivéssemos podido escolher a nossa mãe? Julgo que teríamos escolhido a que temos, enchendo-a de todas as graças. Foi o que Cristo fez, pois sendo Omnipotente, Sapientíssimo e o próprio Amor, seu poder realizou todo o seu querer.
Vede como os cristãos descobriram, há já bastante tempo, este raciocínio: convinha - escreve S. João Damasceno - que aquela que no parto. tinha conservado íntegra a sua virgindade, conservasse depois da morte o seu corpo sem corrupção alguma.. Convinha que aquela que tinha trazido no seu seio o Criador feito menino, habitasse na morada divina.. Convinha que a Esposa de Deus entrasse na casa celestial. Convinha que aquela que tinha visto o seu Filho na Cruz, recebendo assim no seu coração a dor de que tinha sido isenta no parto, o contemplasse sentado à direita do Pai. Convinha que a Mãe de Deus possuísse o que corresponde a seu Filho, e que fosse honrada como Mãe e Escrava de Deus por todas as criaturas.
Os teólogos formularam com frequência um argumento semelhante, tentando compreender de algum modo o significado desse cúmulo de graças de que Maria se encontra revestida, e que culmina com a Assunção aos Céus. Dizem. convinha; Deus podia fazê-lo; e por isso o fez. É a explicação mais clara das razões que levaram Cristo a conceder a sua Mãe todos os privilégios, desde o primeiro instante da sua Imaculada Conceição. Ficou livre do poder de Satanás; é formosa - tota pulchra! - limpa, pura na alma e no corpo.
O mistério do sacrifício silencioso
Mas reparai: se Deus quis, por um lado exaltar a
sua Mãe, por outro, durante a sua vida terrena, não foram poupados a Maria a
experiência da dor, nem o cansaço do trabalho, nem o claro-escuro da fé. Àquela
mulher do povo, que, certo dia, irrompe em louvores a Jesus, exclamando Bem aventurado o ventre que te trouxe e os peitos a que foste amamentado, o Senhor responde: Antes bem aventurados aqueles que ouvem a palavra de Deus, e
a põem em prática. Era o elogio da sua Mãe, do seu fiat, do faça-se, sincero, entregue, cumprido até às últimas
consequências, que não se manifestou em acções aparatosas, mas no sacrifício
escondido e silencioso de cada dia.
Ao meditar nestas verdades, percebemos um pouco
mais a lógica de Deus. Compreendemos que o valor sobrenatural da nossa vida não
depende de que se tornem realidade as grandes façanhas que por vezes forjamos
com a imaginação, mas da aceitação fiel da vontade divina, da disposição
generosa nos pequenos sacrifícios diários,
Para sermos divinos, para nos
"endeusarmos", temos de começar por ser muito humanos, vivendo face a
Deus dentro da nossa condição de homens correntes, santificando esta aparente
pequenez. Assim viveu Maria. A cheia de graça, a que é objecto das complacências
de Deus, a que está acima dos anjos e dos santos teve uma existência normal.
Maria é uma criatura como nós, com um coração como o nosso, capaz de gozo e de
alegrias, de sofrimento e de lágrimas. Antes de Gabriel lhe comunicar o querer
de Deus, não sabe que tinha sido escolhida desde toda a eternidade para ser Mãe
do Messias. Considera-se a si mesma cheia de baixeza; por isso, reconhece logo,
com profunda humildade, que fez em mim grandes coisas Aquele que é Todo-poderoso.
A pureza, a humildade e a generosidade de Maria
contrastam com a nossa miséria, com o nosso egoísmo. É razoável que, depois de
nos apercebermos disso, nos sintamos movidos a imitá-la. Somos criaturas de
Deus, como Ela, e basta que nos esforcemos por ser fiéis para que também em nós
o Senhor faça grandes coisas. Não será obstáculo a nossa pequenez, porque Deus
escolhe o que vale pouco, para que assim brilhe melhor a potência do seu amor.
Imitar Maria
A nossa Mãe é modelo de correspondência à graça e,
ao contemplarmos a sua vida, o Senhor dar-nos-á luz para que saibamos divinizar
a nossa existência vulgar. Durante o ano, quando celebramos as festas marianas,
e cada dia em várias ocasiões, nós, os cristãos, pensamos muitas vezes na
Virgem. Se aproveitamos esses instantes, imaginando como se comportaria a nossa
Mãe nas tarefas que temos de realizar, iremos aprendendo a pouco e pouco, até
que acabaremos por nos parecermos com Ela, como os filhos se parecem com a sua
mãe.
Imitar, em primeiro lugar, o seu amor. A caridade
não se limita a sentimentos: há-de estar presente nas palavras e, sobretudo,
nas obras. A Virgem não só disse fiat, mas também cumpriu essa decisão firme e
irrevogável a todo o momento. Assim, também nós, quando o amor de Deus nos
ferir e soubermos o que Ele quer, devemos comprometer-nos a ser fiéis, leais,
mas a sê-lo efectivamente. Porque nem todo o que me diz: Senhor, Senhor, entrará no reino dos céus; mas o que faz a vontade de meu Pai, que está nos Céus, esse entrará no reino dos Céus.
Temos de imitar a sua natural e sobrenatural
elegância. Ela é uma criatura privilegiada na História da Salvação, porque em
Maria o Verbo se fez carne e habitou entre nós. Foi testemunha delicada, que soube passar
inadvertida; não foi amiga de receber louvores, pois não ambicionou a sua
própria glória. Maria assiste aos mistérios da infância de seu Filho,
mistérios, se assim se pode dizer, cheios de normalidade; mas à hora dos
grandes milagres e das aclamações das massas desaparece. Em Jerusalém, quando
Cristo - montado sobre um jumentinho - é vitoriado como Rei, não está Maria.
Mas reaparece junto da Cruz, quando todos fogem. Este modo de se comportar tem
o sabor, sem qualquer afectação, da grandeza, da profundidade, da santidade da
sua alma!
Procuremos aprender, seguindo também o seu exemplo
de obediência a Deus, numa delicada combinação de submissão e de fidalguia. Em
Maria, nada existe da atitude das virgens néscias, que obedecem, sim, mas como
insensatas. Nossa Senhora ouve com atenção o que Deus quer, pondera aquilo que
não entende, pergunta o que não sabe. Imediatamente a seguir, entrega-se sem
reservas ao cumprimento da vontade divina: eis aqui a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a Vossa palavra. Vedes esta maravilha? Santa Maria, mestra de
toda a nossa conduta, ensina-nos agora que a obediência a Deus não é
servilismo, não subjuga a consciência, pois move-nos interiormente a
descobrirmos a liberdade dos filhos de Deus.
A alegria cristã
Recolhamos de novo o tema que a Igreja nos propõe: Maria subiu aos céus em corpo e alma: os anjos rejubilam! Penso também no júbilo de S. José, seu Esposo castíssimo, que a aguardava no paraíso. Mas voltemos à Terra. A fé confirma-nos que aqui em baixo, na vida presente, estamos em tempo de viagem, pelo que não faltarão os sacrifícios, a dor e as privações. Todavia, a alegria há-de ser sempre o contraponto do caminho.
Servi ao Senhor com alegria. Não há outro modo de servi-Lo,. Deus ama quem dá com alegria, quem se entrega totalmente num sacrifício gostoso porque não há motivo algum que justifique o desânimo!
Talvez julgueis que este optimismo é excessivo, porque todos os homens conhecem as suas insuficiências e os seus fracassos, experimentam o sofrimento, o cansaço, a ingratidão, talvez até o ódio. Nós, os cristãos, se somos iguais aos outros, como poderemos estar livres dessas constantes da condição humaniza?
Seria ingénuo negar a reiterada presença da dor e do desânimo, da tristeza e da solidão, durante a nossa peregrinação por esta terra. Aprendemos pela fé com segurança que tudo isso não é produto do acaso e que o destino da criatura não é caminhar para a aniquilação dos seus desejos de felicidade. A fé ensina-nos que tudo tem um sentido divino, pois esta é uma característica intrínseca e própria do caminho que nos leva à casa do Pai. Esta maneira sobrenatural de compreender a existência terrena do cristão, não simplifica a complexidade humana, mas assegura ao homem que essa complexidade pode ser penetrada pelo nervo do amor de Deus, pelo cabo forte e indestrutível, que liga a vida na Terra com a vida definitiva na Pátria.
Estas palavras são o final maravilhoso da parábola do filho pródigo, que jamais nos cansaremos de meditar: eis que o Pai vem ao teu encontro; inclinar-se-á sobre o teu ombro e dar-te-á um beijo, penhor de amor e de ternura; fará que te entreguem um vestido, um anel, o calçado. Tu receias ainda uma repreensão, e ele devolve-te a tua dignidade; temes um castigo, e dá-te um beijo; tens medo duma palavra irada, e prepara para ti um banquete.
O amor de Deus é insondável. Se procede assim com quem O ofendeu, o que não fará para honrar a sua Mãe, imaculada, Virgo fidelis, Virgem Santíssima, sempre fiel?
Se o amor de Deus se manifesta tão grande quando o acolhimento que lhe dá o coração humano - tantas vezes traidor - é tão pouco, como não será no coração de Maria, que nunca levantou o mínimo obstáculo à vontade de Deus?
Vede como a liturgia da festa faz eco da impossibilidade de compreender a misericórdia infinita do Senhor com raciocínios humanos; mais do que explicar, canta; fere a imaginação, a fim de que todos se entusiasmem no louvor, pois ficaremos sempre muito aquém do que é merecido: apareceu no céu um grande sinal. Uma mulher vestida de sol, e a lua debaixo de seus pés, e uma coroa de doze estrelas sobre a sua cabeça. E o rei cobiçará a tua beleza. A filha do rei entra toda formosa; tecidos de ouro são os seus vestidos.
A liturgia acabará com algumas palavras de Maria, nas quais a maior humildade se conjuga com a maior glória: eis que, de hoje em diante, todas as gerações me chamarão bem aventurada, porque fez em mim grandes coisas aquele que é todo poderoso.
Cor Mariae Dulcissimum, iter para tutum: Coração Dulcíssimo de Maria, dá força e segurança ao nosso caminho na Terra. Sê tu mesma o nosso caminho, porque tu conheces as vias e os atalhos certos que, através do teu amor, levam ao amor de Jesus Cristo.
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